domingo, 8 de setembro de 2013

MARCAS


Teimava e teima, pela tardinha, aparecer ao pôr-do-sol para me encantar os olhos e os sorrisos que brotam serenos em mim logo que a vejo.

Mulher esbelta e bonita mas mal cuidada, até maltrapilha na simplicidade das roupas, muito descarada nos gestos e andar solto e atrevido, parece uma actriz espirituosa que se insinua num papel qualquer que adora representar.

Ergue a mão com o anel de folheta dourado, bem alto, para a espetar na bola de fogo do sol que se deita todos os dias no mesmíssimo sitio... extasia-se neste ritual diário que me delicia profundamente, como se pedisse namoro ou noivado eterno ao sol nos seus pensamentos mais secretos... como se se quisesse imortalizar nestes momentos do viver assim.

Percorre muito da costa em satisfação imensa olhando o mar e o céu em contemplação, sozinha mas nunca a sós, o assobiar e ondular do corpo denuncia-a, e eu apanho toda esta atracção que me envolve e desarma a todo o instante

Despe as pernas muitas vezes (como a alma) na mais natural nudez no mergulhar e chapinar a carne nas ondas meigas que se estendem no areal que se renova constantemente, agarra a virgindade das sensações como se fossem as primeiras, e vibra balanceando a cabeça em prazer muito seu a passo ou em pequenas correrias equilibrando-se na gravidade.

Olha as coisas e o mundo em redor com olhos atentos e indagadores mas despreocupados e vazios como se esperasse que tudo à sua volta se revelasse, como se esperasse que os elementos e sentidos que lhe entram no sentir, como o mar, as pessoas, o horizonte e os sentimentos lhe revelassem confidências e verdades e segredos.

Olha para onde está virada como se fosse um espaço em branco que precisa de ser ocupado com informações, revelações e manifestações, para entender o que lhe chega, para perceber o que está para além do aspecto imediato - identificar o significado das coisas que lhe inunda a cabeça - decifrar os jogos das evocações, das memórias, o lado menos visível da vida.

Tudo é ritual diário, mas singular no saborear novo em cada dia e isto deslumbra-me, deixando-me hipnótico de olhos colados neste gostar de aproveitar o passear assim.

A tentação de me aproximar é muita, imensa, conversar um pouco e descobri-la por dentro.
Mas ao mesmo tempo é avassalador o receio do risco de quebrar toda esta envolvência fascinante que me transmite assim no desconhecimento.   

Previ couraça dura na pessoa desta mulher e adivinhei... não foi fácil conquistá-la.
A conversa fluiu e as mãos entregaram-se.
Sereno o seu toque de mão, como o sol meio encoberto que se deita ao longe, o sangue lateja-me nas veias mais apressadamente como se tivesse pressa de chegar a algum lado.
E não temos pressa nenhuma, queremos ficar assim na docilidade do momento.

Os sons que ecoam no nosso sentir rivalizam com o belíssimo ressoar do mar exaltado que canta melodias de encanto - se estiveres bem eu estou bem neste gostar impetuoso.

Nós estamos estranhamente calmos, possuímo-nos no ar que nos embrulha nos toques das mãos e respirar solto e sonhador que se estende... estende-se para além do mais profundo das palavras, no reino do sangue e entranhas.

Ondas de vento forte trazem maciços de nuvens que escurecem a luz já ténue  do dia, troveja ao largo e outros rasgos fulminantes de cor surgem em desenhos surreais, as vozes do som estridente dançam na chuva que cai teimosamente compondo musicais arrebatadores, já não chovia há muito e isto parece novidade, alquimia - e tudo isto não empalidece o róseo do seu rosto lindíssimo... há uma aura invisível que nos protege do mau tempo e rejubilamos de alegria.

Se pudesse desligar-me das coisas térreas, caminhava contigo pelos caminhos etéreos, infinitos, que me criaram. que nos criaram.

Às vezes apetece-me adormecer assim, eternizar-me assim, com ela no meu colo, na bolsa de calor que irradia - uma espécie de ventre viajante, flutuador, que nos deixa paralisados assim em braços de paixão profunda.
 
Carlos Reis