sábado, 23 de março de 2013

AS CRIANÇAS DO PINTOR



Era bajulado constantemente por onde andava e expunha os seus trabalhos de pintor admirado e conceituado.
O orgulho e humildade faziam parte dos seus gestos e sorrisos. Falava com paixão e ternura das suas pinturas em vaidades simples, que o gosto de pintar manifestações dos sentimentos e dos sentidos  "eram oferendas do fervor da sensibilidade da sua alma".

 
No meio do espaço, enorme espaço cheio de tintas e pincéis, telas e panos e paus espalhados pelo chão e paredes longas e altas - o homem, especado em frente da tela que pintava parecia uma estátua de braço caído de pincel na mão.

Olhar fixo na tela rosnava baixinho sons de desagrado, de insatisfação... parecia firme e determinado mas os traços na tela mostravam insegurança  e hesitação, de tão parado que estava a tensão que irradiava curvava o ar em redor, parecia que ia explodir a qualquer momento.

Ele não sabia mas por cima dele esvoaçavam duas sombras que pareciam duas aves enormes que, indistintas, a espaços se mostravam claramente ferozes que se cruzavam com rapidez fulminante, lutando com certeza na busca de algum troféu que o pintor desconhecia deixando-o desconcentrado.

- Raios!!... Que se passa comigo? Eu sei o que quero, penso que sei, acho que tenho tudo bem claro na cabeça e a mão não me obedece vacilando a todo o instante. Estarei alucinado ou tão bêbado assim?!

Irritado e enfurecido pousa o pincel na mesa e sobe as estreitas escadas até à galeria que circunda metade do alto do armazém/estúdio de janelas amplas viradas para oeste.
Abre a porta de rompante que dá para o pátio no cimo da falésia, precisava do ar fresco do mar, dando uma valente cabeçada nela ficando com uma marca bifurcada na testa bem visível... negras como braços que se estendem aflitos.
 
Ao lado, na casa contígua, duas crianças assistem àquela cena, curiosas, mas de olhar passivo como se já estivessem muito habituadas à presença deambulante do pintor, que parecia um fantasma vestido de farrapos de emoções.
 
Nitidamente desassossegado pega numa cigarrilha e bebe umas goladas de  cerveja gelada olhando o mar suave que se entoa nos braços das rochas
- Que vedes aí do alto gaivotas?... Grito estouvado... Pedido sem ecos...
- Que vedes lá ao fundo onde o mar se debruça em outros dorsos de encantos e mistérios?
- Não vedes por acaso o barco azul das quimeras prometidas em sonos molhados? Soprado por vozes de fabulações do tempo a mando de êxtases eufóricos ?
    
Desanimado e cansado, sem respostas nem certezas pousa os olhos parados, mas argutos no abstracto, no horizonte... procurando sinais... indagando sensações.
Olhos que se entregam ao prazer rebelde do vento estimulador vindo do mar, absorvendo energia que o inunda e trespassa por inteiro, sopros de energia abundante e inspiradora que se funde no ar que respira.
 
Dentro do estúdio as crianças observam a tela... - Parece uma mulher com cauda de peixe. - É uma aparição em forma de sereia, diz a outra.
Admiravam a sereia enorme, surgida do nada, envolta de ondas revoltas, gigantescas, que a deixavam muito desnuda bailando de braços abertos nas cristas do carrossel da água.. abraços desprendidos no ar.
- É lindo!..  Está linda no meio dos verdes e azuis da água no seu corpo dourado que relampeja no céu espasmos de brancos esfiapados. 
- Há nuvens, além, que a olham de olhos brilhantes... deleitosos e embevecidos que veneram.

Sombras escuras lutam no ar... - Há algo de estranho neste espaço (segreda baixinho uma das crianças) não sentes aragens de ar doridos?... Gritos feridos que gemem?
Destemidas, levadas pela tentação da curiosidade decidem destapar algumas telas viradas contra a parede.

- Esta aqui não é lá muito bonita, é um braço enorme vermelho de forquilha na mão trespassando um corpo de branco luzidio... labaredas gigantescas rejubilam no meio do poço de ar entre os montes cheios de verdes resplandecentes que defendem a entrada da cascata de água. - É o desenrolar de uma contenda ferozmente travada por um demónio qualquer numa guerra inacabada. Diz a outra.

- Aqui são dois corpos nus deitados no chão suado, olhando-se... olhares serenos envoltos de sorrisos que se fundem..  como a beleza das borboletas quando se metamorfoseiam e livres esvoaçam de asas coloridas na vida e nos sonhos . - São olhares de satisfação e deleite depois dos momentos de amor. Diz a outra.
 
- Este aqui de olhos esbugalhados raiados de sangue que se atravessa no caminho do grupo de pessoas alegres em festejos, amedronta... são olhares de sentimentos atormentados, frustrados, sinais de cólera por ver felicidade nos outros que não consegue atingir. - São sentires de raiva e inveja descontrolados. Diz a outra.

- Este é belo!!... Infinitamente belo... o bebé nu esperneando na relva exuberante, viçosa coberta de gotas alva transparentes no imenso planalto cheio de luz, gargalhando para o manto do arco-íris deslumbrante no céu que o beija... sibilam  os voos dos pássaros à sua volta criando ondas de calor embalando-o... cantam os peixes magos no lago folheado aos seus pés que irriga as árvores dos abraços de aromas macios e indeléveis. - É o nascimento, o milagre da vida e da liberdade que nos anima a todos. Diz a outra.

- Repara nas margens do lago quando a brisa faz ondular a água... forma um rosto que reflecte fios de névoa que parece um olho de gotículas na claridade que paira no ar vinda daquele grupo de estrelas. - Talvez represente a visão do transcendente, ou os olhos da alma, não sei. Diz a outra.

- Por que achas que o pintor anda cada vez mais solitário e afastado? Por vezes é um homem muito enigmático e ambíguo, parece que nunca está bem consigo próprio, salta rapidamente entre a inquietude e a serenidade.
Tens-lho visto na ponta da falésia, ora calmo ora agitado, como se falasse com algo invisível?

- Não sei!... As pessoas muito criativas também são bastante instáveis e inseguras... talvez por ser um homem criativo e desassossegado, com os sentidos em turbilhão, raramente está satisfeito com o que cria e inova, descobrir coisas novas é um redemoinho abismal, um emaranhado que confunde... é o desencanto que inunda a alma de desalento na incapacidade de atingir o sublime (ir até para além em limites desconhecidos), na busca da perfeição.

- Não disseste tu que a perfeição é ilusão? Utopia? - Pois disse e mantenho isso pois é a minha opinião... a busca da perfeição é uma demanda errante e inglória pois ela, quando muito, é relativa a momentos, não tem forma nem medida - tal como a felicidade está na satisfação de cada um... é indefinida.

A obsessão da perfeição é perigosa e torpe, muitas vezes deturpa a percepção da genuinidade e autenticidade de muitas outras coisas da vida.
Por outro lado, somos seres sonhadores eternos, insaciáveis, em que a inventiva, a imaginação, a utopia, fazem parte da nossa natureza de ambicionar sempre mais e melhor.

- Sabes, Ingénuo? Se prestares atenção ao que te rodeia e sentes dentro de ti, perceberás que temos forças colossais antagónicas dentro de nós e que nem sempre remam para o mesmo lado - são uma espécie de espíritos gémeos contraditórios que se gladiam sistematicamente... parece que querem ganhar protagonismo singular e maior na personalidade e carácter em cada um de nós. Diz a outra, a Sabida.

(Excerto do conto "As Crianças do Pintor")

Carlos Reis