Continuamos
a namorar à noite nas janelas de muitas outras noites em pedaços pela madrugada
tal e qual como ontem de muitas outras luas apreciadas.
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O
tempo não está mau, amanhã não se trabalha e agora a noite está deliciosamente
calma e dócil como nós, e assim mais um ano se passou depois do alvoroço da
noite.
Encostados
um ao outro saboreamos o fresco friozinho que se passeia pela pele e pelo rosto
no silêncio embalador, cortado por um ou outro carro passageiro de foliões da
passagem de ano, pelos sinos da torre e pelas ilusionistas gaivotas que dançam
em carrossel no céu, ainda despertas de tanto folguedo cá de baixo, ora
silenciosas ora barulhentas doidonas como nós, que bem entendemos estas
manifestações de contentamento.
As
ideias embrulham-se no pulsar calado do respirar e pensamentos soltos brotam
livres em jorros difíceis de alinhar, dar-lhes forma inteligível de tão
dispersos é tarefa árdua - é deixá-los correr. A noite tem esta magia.
Estas
noites de festas de rodopios transbordantes onde o entusiasmo e alegria e
barulheira são dominantes é saudável o pacífico de algum descontrolo.
Falamos
das coisas da vida e no conseguido até agora, falamos das vitórias e mágoas,
das alegrias e tristezas do ano... de planos para alguns projectos
prioritários, e encolhemos os ombros para outras ideias ainda indefinidas num
"vamos deixar passar mais algum tempo e ver no que dá", pois as
incertezas são mais que as certezas actualmente.
O
cheiro do corpo dela inebria-me, é relaxante mas intenso na excitabilidade e
ela sabe-o e, os nossos corpos comungam a mesma vontade... mas ainda é cedo há
gente acordada por perto.
No
céu as mantas de nuvens imensas de vários tons cinza vão abrindo fendas onde os
brilhos das estrelas jogam na teia da luminosidade dos reflexos que se tocam e
entrelaçam-se e nós, jogamos também com as memórias e desejos nossos, são incitamentos,
augúrios bons (talvez até revelações) intensos de emoções e presságios neste
jogo cintilante das estrelas... os nossos olhos irradiam outros brilhos de
satisfação por existirmos.
É
limpo e sereno o tempo do nosso sentir, de corpos colados um ao outro vamos
admirando o horizonte do casario encavalitado e do céu já bastante luzidio na
tela estrelada, há alegria em nós.
Dei
por mim a sussurrar, quase imperceptível, como se orasse ao ar e à companheira,
em jeito de agradecimento e confidências anónimas que saem.
-
Que mais hei-de dizer a mim próprio para valorizar a sorte que tenho que já não
tenha dito vastíssimas vezes na mais pura franqueza aos que passam, aos amigos,
às mulheres (ela sorriu), à família, até ao mar e às estrelas?
Por
vezes tenho receio de não ter dito a mim próprio tudo que já disse na rua aos
outros.
Há
sentimentos e pensamentos e verdades que sabemos em nós mas nem sempre os admitimos
como nossos e, não há asneira mais tamanha que falsearmos o que grita no mais
íntimo das entranhas.
Acho
que me esqueci até de ler as palmas das minhas mãos, devo ter muito de mim
nelas mapeado, mas nem disso me lembrei.
Ela
olhou-me sorrindo com os olhos cheios de brilhos e disse:
És
um homem muito valioso e extraordinário, construíste esta família, este lar, e
somos muito felizes por fazer parte de ti!... Nem sempre as coisas boas e intensas podem prolongar-se pelo tempo que
desejamos ao mesmo nível, há os altos e baixos naturais do viver.
- Lembras-te de me escrever aquele texto da
«menina das lágrimas»? Aquela parte... aquela parte muito viva em mim. Disse
ela sorrindo apertando-se em mim.
"-
Que procuras menina? - Procuro as minhas lágrimas de Alegria... estava tão
contente e alegre que as deixei rolar pelo rosto e caíram ao chão e agora não
as encontro.
-
Não te preocupes com isso, as tuas lágrimas não desapareceram, mas sim, transformaram-se
em sementes na terra para alimentar a fonte de alegria do mundo, que em outro
lado qualquer vão desabrochar como outras formas de alegria - nas plantas, nas
pessoas, nos rios e montanhas, em outras flores bonitas como tu.
Ao
mesmo tempo gerou em ti outras, muitas outras lágrimas de alegria, vais ver
quando te rires novamente muito, e as lágrimas voltarem a rolar pelo teu lindo
rosto...".
Nem
sempre a nossa alegria e amor está no apogeu mas nunca perdem a chama e
intensidade com que se criaram... o deslumbre continua por menos faladoras
possam estar.
-
Novo ano!... É sim... novo ano juntinhos um com o outro!... As nossas bocas
colaram-se!
Carlos Reis