Era tanta a pressa de pegar nas ideias que brotam todos
os dias que se esquecia do passar do tempo quando este lhe dava algum tempo
para lhes dar vida na escrita e na pintura.
Sôfrego, atropelava-se e confundia-se na ânsia de aproveitar
todos os instantes do momento, se no pensar os pensamentos correm e fluem
rapidamente, no papel e computador as ideias deslizam muito mais lentamente,
penosamente até, na construção dos contos e cantos que tinha dentro de si e
queria pô-los cá para fora.
Somos constantemente influenciados e moldados pelo que
gira à nossa volta, na verdade construímo-nos muito à custa dos alicerces dos
outros, a vida e o pensar dos outros são elos do nosso crescimento.
Sentou-se (penso que me sentei) ao piano e deixou que os
dedos ganhassem vida no jogo sedutor dos corpos das teclas cheios de sons,
improvisou sem pensar em nada, foram os ecos do momento que o levaram, tinha
acabado de acariciar o rosto do bebé e as mãos vibravam de felicidade que
derramou no ar alegre, não sabia bem o que era aquela intensidade mas sentia-se
profundamente feliz, e tocou incessantemente horas a fio em desvario
deslumbrante.
Lembro-me de ti muito risonha e pouca vestida correndo
pelo monte quando o descias tresloucadamente com o cabelo longo no ar flutuando
como asas para te levantar do chão, redesenho-te na mente agora que já não
temos a frescura de outrora, e continuas sonho, e continuo a sonhar-te.
Apetece-me escrever e agora escrevo solto e livre sem
pensar em ninguém, talvez em ti, não sei se é só para ti, é para mim também com
certeza, e se calhar para este momento aparentemente sem significado especial
mas que me impele a registá-lo em palavras, ainda guardas o sentir que te
confiei na altura?
Lembras-te do conto que escrevemos oralmente falando alto
e baixo em todas as altura das nossas frequentes idas para o cimo do monte?
A raiva que tenho do tempo ter minguado... a raiva que
tenho de já não ter tempo para sentar-me nas rochas dentro do mar o tempo que
me apetecer. Agora olho-as mais de longe
e alguma revolta remói-me cá dentro. Por que não hei -de romper com este viver
aflitivo actual? Por que tudo se passa tão depressa que é cada vez menos o
saboreio dos momentos?
Sei de pessoas que não param um instante de manhã à noite
e têm vários empregos e serviços ao dia, descansam (se assim se pode dizer)
umas horas de dormir intranquilo que nunca são as suficientes e tantas vezes
sobressaltadas pelo toque do despertador.
Agora está um fresco delicioso que vem do mar, é
Primavera e andam cheiros no ar que estimulam e sabem bem, sinto-os mas não
consigo descascá-los, decifrá-los, se calhar dar o devido valor a estes aromas
que me inundam tão saborosamente o respirar - há muito de coxas e carne
feminina neste ar fresco emocional que me toca.
Hoje o remanso do mar que de tão quieto inquieta-me, é um
mar bravio e rebelde este, belo e único, por vezes deixa-se sossegar e amansar
que perturba de tanto encanto exuberante e dócil estendido até ao outro lado
mundo.
Contrasta imenso com o soar das vozes e o vibrar das
almas das gentes que em terra comemoram e festejam a data da revolução de
Abril, o entusiasmo cantado e gritado
troa pelo ar no intenso sentir das liberdades, na tenacidade exaltada e uníssona
na corrente de gente que em alegria fazem valer os seus direitos e conquistas
que nunca devem ser esmorecidos, a hora é de luta e de demonstração de força e
alento pois de sofrimento e penúria já chega!
O céu escurece e já chove, isto nem é mau sinal, a água é
sinónimo de fertilidade e de vida, e a vida faz-se lutando contra tudo e contra
todos que nos querem encarneirar os passos.
Já me perguntei vezes sem conta que sentido faz a vida se
a deixarmos nas intenções e pretensões de usurpadores gananciosos - eu que
tanto prezo a minha liberdade e independência e que até sou bastante
transgressor nos limites ousados do viver, choca-me saber da existência de
gente assim podre.
O que me vale de verdade é o sossego e a tranquilidade no
passear relaxado pelo mar e pela barraca do monte perto das estrelas, dentro do
fascínio das estrelas na vastidão do espaço nocturno, os silêncios em redor e
que me envolvem produzem em mim efeitos fantásticos no sentir a magia
espiritual que pulsa e respira à volta, muitas vezes mesmo com a cabeça oca sem
pensar em nada de concreto ouço os ecos do meu pensamento à distância, em outra
dimensão!
O desenho estelar e o choro estridente com que brindei
este mundo no momento em que nasci até me augurou (augura) destino bom, mas não
sei bem o que faço e para onde vou, talvez tirando o óbvio.
Nasci em dia feliz
mas se calhar em hora estranha e de rumo incerto... confesso que não tive culpa
nenhuma!
Carlos Reis