sexta-feira, 2 de maio de 2014

Sentinela



Era tanta a pressa de pegar nas ideias que brotam todos os dias que se esquecia do passar do tempo quando este lhe dava algum tempo para lhes dar vida na escrita e na pintura.

Sôfrego, atropelava-se e confundia-se na ânsia de aproveitar todos os instantes do momento, se no pensar os pensamentos correm e fluem rapidamente, no papel e computador as ideias deslizam muito mais lentamente, penosamente até, na construção dos contos e cantos que tinha dentro de si e queria pô-los cá para fora.

Somos constantemente influenciados e moldados pelo que gira à nossa volta, na verdade construímo-nos muito à custa dos alicerces dos outros, a vida e o pensar dos outros são elos do nosso crescimento.

Sentou-se (penso que me sentei) ao piano e deixou que os dedos ganhassem vida no jogo sedutor dos corpos das teclas cheios de sons, improvisou sem pensar em nada, foram os ecos do momento que o levaram, tinha acabado de acariciar o rosto do bebé e as mãos vibravam de felicidade que derramou no ar alegre, não sabia bem o que era aquela intensidade mas sentia-se profundamente feliz, e tocou incessantemente horas a fio em desvario deslumbrante.

Lembro-me de ti muito risonha e pouca vestida correndo pelo monte quando o descias tresloucadamente com o cabelo longo no ar flutuando como asas para te levantar do chão, redesenho-te na mente agora que já não temos a frescura de outrora, e continuas sonho, e continuo a sonhar-te.

Apetece-me escrever e agora escrevo solto e livre sem pensar em ninguém, talvez em ti, não sei se é só para ti, é para mim também com certeza, e se calhar para este momento aparentemente sem significado especial mas que me impele a registá-lo em palavras, ainda guardas o sentir que te confiei na altura?

Lembras-te do conto que escrevemos oralmente falando alto e baixo em todas as altura das nossas frequentes idas para o cimo do monte?

A raiva que tenho do tempo ter minguado... a raiva que tenho de já não ter tempo para sentar-me nas rochas dentro do mar o tempo que me apetecer.  Agora olho-as mais de longe e alguma revolta remói-me cá dentro. Por que não hei -de romper com este viver aflitivo actual? Por que tudo se passa tão depressa que é cada vez menos o saboreio dos momentos?

Sei de pessoas que não param um instante de manhã à noite e têm vários empregos e serviços ao dia, descansam (se assim se pode dizer) umas horas de dormir intranquilo que nunca são as suficientes e tantas vezes sobressaltadas pelo toque do despertador.

Agora está um fresco delicioso que vem do mar, é Primavera e andam cheiros no ar que estimulam e sabem bem, sinto-os mas não consigo descascá-los, decifrá-los, se calhar dar o devido valor a estes aromas que me inundam tão saborosamente o respirar - há muito de coxas e carne feminina neste ar fresco emocional que me toca.

Hoje o remanso do mar que de tão quieto inquieta-me, é um mar bravio e rebelde este, belo e único, por vezes deixa-se sossegar e amansar que perturba de tanto encanto exuberante e dócil estendido até ao outro lado mundo.

Contrasta imenso com o soar das vozes e o vibrar das almas das gentes que em terra comemoram e festejam a data da revolução de Abril,  o entusiasmo cantado e gritado troa pelo ar no intenso sentir das liberdades, na tenacidade exaltada e uníssona na corrente de gente que em alegria fazem valer os seus direitos e conquistas que nunca devem ser esmorecidos, a hora é de luta e de demonstração de força e alento pois de sofrimento e penúria já chega!

O céu escurece e já chove, isto nem é mau sinal, a água é sinónimo de fertilidade e de vida, e a vida faz-se lutando contra tudo e contra todos que nos querem encarneirar os passos.

Já me perguntei vezes sem conta que sentido faz a vida se a deixarmos nas intenções e pretensões de usurpadores gananciosos - eu que tanto prezo a minha liberdade e independência e que até sou bastante transgressor nos limites ousados do viver, choca-me saber da existência de gente assim podre.

O que me vale de verdade é o sossego e a tranquilidade no passear relaxado pelo mar e pela barraca do monte perto das estrelas, dentro do fascínio das estrelas na vastidão do espaço nocturno, os silêncios em redor e que me envolvem produzem em mim efeitos fantásticos no sentir a magia espiritual que pulsa e respira à volta, muitas vezes mesmo com a cabeça oca sem pensar em nada de concreto ouço os ecos do meu pensamento à distância, em outra dimensão!

O desenho estelar e o choro estridente com que brindei este mundo no momento em que nasci até me augurou (augura) destino bom, mas não sei bem o que faço e para onde vou, talvez tirando o óbvio.

Nasci  em dia feliz mas se calhar em hora estranha e de rumo incerto... confesso que não tive culpa nenhuma!

Carlos Reis